Robot a fazer um mortal à rectaguarda
Nunca como hoje fomos confrontados com a mutiplicidade de
tempos. Em muitas partes do planeta vive-se e concebe-se o mundo de formas
próximas da Pré-História; cosmologias animistas, enraízadas nos mais profundos
tempos da humanidade, continuam activas, e alguns dos seus sintomas ainda podem
ser encontrados nos mais modernos dos países. Por cá tratamos de assuntos
mundanos da nossa vidinha colectiva e sectorial. Ao mesmo tempo, falam-nos no
fim da humanidade e de uma pós-humanidade, com profeciais já para 2045. É já
ali. Nada de muito novo. Ou será?
O fim da humanidade, como diz Jean-Gabriel Ganascia (2018),
já não está ligado a uma guerra nuclear, a um qualquer meteorito, ao buraco de
osono, aquecimento global ou outras variáveis climáticas, mas ao
desenvolvimento a um ritmo exponencial da sua tecnologia.
Há dois anos um grupo de cientistas famosos, encabeçados por
Stephen Hawking, reclamava urgência na moderação e controlo desta dinâmica, de
crescimento exponencial (geométrico), anunciando o momento em que as máquinas,
ganhando consciência e auto-controlo, criarão um momento histórico de
Singularidade, o conceito emprestado das matemáticas para representar esse
momento de ruptura. Já não é a gente da ficção científica e da literatura. É já
a gente de vanguarda da ciência mundial a falar.
Nós, os que andamos entretidos com os problemas comuns,
tendemos a continuar a olhar para isto com um sorriso, quase divertido, e
prosseguimos.
Mas quando lemos que já existe, entre muitas outras coisas
do género, uma coisa chamada “2045 Strategic Social Initiative”, financiada por
um empreário russo, que está, repito está, a trabalhar no fabrico de avatares
para receberem o descarregamento da mente humana, constituindo-se como veículos
da consciência e personalidade de cada um, para-se para pensar e, diria,
admirar e tremer.
A possibilidade da desmaterialização do humano está aí, fora
da literatura e da imaginação. Durante milénios a cultura Ocidental criou uma
dicotomia entre corpo e espírito. O corpo era apenas um recipiente habitado
pelo verdadeiro eu, a alma. Foram precisos séculos de filosofia e alguma
ciência para ultrapassar esta dicotomia e propor a dualidade e a
interdependência, sempre retida por outras culturas não ocidentais.
Agora é a ciência, já não Ocidental mas global, a gerar uma
nova visão dicotómica. A de que é possível essa separação; que a mente pode ser
descarregada e libertada desse seu peso material que é o corpo, como que
digitalizada e incorporada em suportes renováveis. É a nova promessa de
imortalidade. Mas simultaneamente, uma promessa acompanhada de uma progressiva “cibernização”
do humano, até a biologia ceder por completo à tecnologia. E há quem diga que já entrámos em estado de não retorno. Para outros, este é apenas mais um passo do evolucionismo, esgotado
o papel reservado à humanidade na trajectória.
O livro de J.G. Ganascia é uma contestação a estas
perspectivas alarmistas, mas fica claro que, para pessoas como eu, esta é uma questão essencialmente
para assistir, com um misto de emoções.
Mas que me deixa deliciado com a relativização que obriga a
fazer, sobre todos aqueles problemas que, quotidianamnete, nos deixam
indignados e revoltados.
De repente, fica-se sorridente parante a importância que devemos dedicar ao pormenor e a sua simultânea irrelevância.
Referência Bibliográfica
Jean-Gabriel Ganascia (2018), O mito da Singularidade.
Devemos temer a inteligência artificial?, Círculo de Leitores, Lisboa.
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