quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

0030 - Contra corrente ou "Por esse rio acima"


Os Bonecos de Estremoz foram considerados património imaterial da humanidade. Bem, não terão sido exactamente os bonecos, pois esses são bem materiais, mas a actividade e a vivência ligadas à sua concepção e produção. Essas sim, mais imateriais. 
É mais um degrau dessa ânsia de patrimonialização de escala mundial que a vai progressivamente banalizando e desvalorizando. Não são os bonecos ou os chocalhos que estão em causa. Apenas a forma como se desgasta o conceito de “valor patrimonial de escala universal”. Quantos milhares de outras formas de fazer, que se materializam em objectos únicos, e que marcam tradições culturais locais e regionais estão a desaparecer e não são mais nem menos do que estas?
O que se está a passar com o desregrado processo de inflação de patrimonializações, que confunde local, regional, nacional, mundial, obedece mais à designada “networking” (vulgo candidatura bem montada), que a uma avaliação coenrente com a escala em causa.
Dir-me-ão: mas daí não vem grande mal ao mundo, nem ao património, antes pelo contrário, há qualquer coisa que passa a ser mais valorizada e conhecida, ganhando novo fôlego de vida. E até poderiam ter razão, não fosse o património um assunto de memória e o facto de a memória humana se parecer cada vez mais com um disco rígido.
Fiquei hoje a saber que todo este entusiasmo em torno aos bonecos de Estremoz fez com que no museu local, onde existia exposta uma colecção de arqueologia, a mesma tenha sido retirada, perante a invasão dos bonecos. E isto revela o que está realmente por trás de uma candidatura deste género: encontrar um “sound bite” patrimonial para ganhar destaque, sobressair, atrair visitantes, mesmo que isso seja à custa de encaixotar outros patrimónios, outras memórias, mais distantes e que aparentemente reflectem menos os sentimentos identitários presentes e, sobretudo, as angústias e as nostalgias que o acelerar dos tempos provocam com o desaparecimento de tradições que ainda nos são próximas e, naturalmente, estratégias políticas de escala pouco mundial.
Parece que a nossa memória é, de facto, tão limitada como a de um disco rígido, e que para armazenar algo novo e preservar qualquer coisa, temos que apagar algo mais antigo. Diria que o património arqueológico, enquanto materialidade de memórias mais distantes, está a sofrer desta reorientação para o intangível e mais próximo. Emocionalmente mais envolvidos com o que está mais próximo de nós e que morre aos poucos, não nos apercebermos que, na ânsia de preservar essa proximidade, vamos inadvertidamente apangando memórias mais antigas.
E enquando o país saúda mais um património local promovido a mundial, o Alentejo vai sendo surribado do seu património arqueológico milenar ou centenar, numa espécie de formatação do disco.

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