sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

0031 - Cá vamos patrimonializando e rindo


É hoje banal, pelo menos entre certos círculos, reclamar contra as dicotomias, sublinhando que as oposições corpo/alma, sujeito/objecto, material/imaterial, ideia/matéria ou outras do género são teias de aranha herdadas do cartesianismo. A “dualidade” de Giddens foi-se impondo a uns, sendo que outros preferem falar de “relacionalidade” e outros ainda de holismo, onde toda a separação é apenas metódica. Alinho em todas estas perpectivas que visam superar visões dicotómicas do mundo e das coisas, menos naquelas que acham que, no mundo actual, não são elas que imperam na condução das coisas e nas decisões que lhes estão subjacentes. A dualidade da estrutura ainda é terreno do pensamento de uma minoria. A dicotomia perdura, resiste e domina. Descartes está bem vivo no senso comum e noutros.

Vem isto a propósito da dicotomia gerada pela institucionalização do conceito de Património Imaterial. A designação não me incomoda particularmente, porque nela percebo o sublinhar de uma, digamos, dimensão preponderante, mais intagível e, por isso mesmo, mais volúvel no tempo. Mas, no terreno do prático (que, ai, ai, não desconecto do teórico) o que acontece é que se tem vindo a subjugar a dimensão material à imaterial, assumindo, mesmo que incosncientemente, a dicotomia. Os reflexos disto nos processos de patrimonialização são óbvios (note-se que falo de patrimonialização, pois entendo o património como uma construção contingente, como um estatuto atribuído, como um toque de uma espada no ombro por reconhecimento de valor): é inegável que nas últimas décadas se tem patrimonializado mais com base no intangível e onde o tangível vai atrás (porque, lá está, não há dicotomia). É a actividade (e a sociologia que representa) que está no centro, e as materialidades o pretexto.

Relaciono esta tendência com a aceleração do tempo histórico e com o facto, de no tempo de vida humano, as coisas mudarem cada vez mais rapidamente, gerando sentimentos de perda, angústia, nostalgia face ao conhecido, valorizado, mas em processo de desaparecimento. A patrimonialização surge como uma espécie de boia de salvação das vivências, das experiências, dos ambientes, das coisas que nos povoam a memória e a vida, mas estão em risco. Tudo coisas próximas e que exercem sobre nós um efeito que as mais distantes já não  conseguem, sendo estas  remetidas, mais para o campo da curiosidade, do conhecimento e da racionalização, mas fora do âmbito das emoções e dos oportunismos políticos em que cada vez mais se desenvolve o processo de patrimonialização. E começa a confundir-se cada vez mais documento com património, vida com património, mudança com perda e morte. A passagem de uma visão cíclica do tempo e de um permanente retorno a um momento mítico original e fundador, que transpora consigo uma “ausência de mudança”, a um tempo linear e de inevitável transformação e esquecimento teria que gerar qualquer coisa como este problema identitário e psicológico que é a patrimonialização, esta tentativa de perpectuação, de suspensão do tempo.

Mas hoje, com a aceleração dessa mudança, a ruína distante ou mesmo o edifício mais monumental têm dificuldades em competrir pela atenção dos agentes patrimonializadores, até porque alguns desses elementos são economicamente e politicamente menos competitivos (levantam mais problemas e são menos “sexis” num ambiente cultural hedonista). E pouco importa que sejam mais representativos das dinâmicas e trajectórias da humanidade em determinados momentos da história e que o sejam a escala global, que estejam em maior risco ou simplesmente se encontrem a ser dizimados. São apenas materialidades, às quais, dicotomicamente, não se lhes reconhece a dimensão espiritual central nas trajectórias de se ser humano. Por descohecimento e ignorâcia, mas também por equívoco.

Mas, como dizia, o património é uma construção contingente. Pelo que aquilo a que assistimos é um excelente documento dos tempos que vivemos. Ainda vamos patrimonializar esta ânsia de patrimonialização, apenas não sei ainda muito bem que materialidades lhe estarão associadas.

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