Ah! A tradicional irreverência estudantil. Cada vez menos
tradicional e cada vez menos irreverente. Pois hoje parece que ser irreverente é embebedar-se,
dizer umas quantas asneiras e exprimir-se através de linguagem holofrásica,
partir coisas, baixar as calças ou levantar as saias, ser ordinário da forma
mais básica de ser ordinário (sim, porque até na ordinarice há gradações),
vomitar, e achar, depois disto tudo, que se é o máximo e se é um “Académico”. Ah! E é "normal".
Cresci a ouvir sobre comportamentos irreverentes
estundantis. Ouvi sobre um tal Pita, um mito em Coimbra. Sobre como terá
roubado as setas de prata do S. Sebastião das Portas do Sol para as colocar no “prego”
e lá ter deixado um cartaz a dizer “basta de tanto sofrer”; de como terá
tentado fazer a paz com a polícia local, convidando o chefe para um jantar onde
foram servidos os patos roubados a um lago de Coimbra; de como um desenho de Cristo oferecido a uma apaixonada por um estudante dotado para as artes foi
devolvido com um pedido de autógrafo e que voltou totalmente apagado e com a
simples frase: “ressuscitou”. E muitas outras coisas. Depois aprendi sobre os
movimentos estudantis da primavera marcelista, mais próximos de mim, mas ainda
assim longe em termos geracionais. Umas coisas mais ousadas, outras nem tanto.
Mas sempre sustentadas em inteligência, humor, crítica, desafio social, mesmo
quando ideologicamente mais distantes. Habituei-me a associar o estatuto de
estudante a estudo, a dedicação, a irreverência, a crítica e a inteligência,
colocando o padrão de comparação nesse passado que só conheci por intermédia
pessoa.
Habituei-me mal. Porque caí no logro da “plenitude”, que
Ortega Y Gasset tão bem descreveu. Um passado”próximo plenário” e que tudo vê “na
sua óptica” e que “sofrerá irremediavelmente a miragem de sentir a idade presente
como um cair da plenitude, como uma decadência”. E cita Horácio para demonstrar
que esta é uma circunstância de percepção que acompanha o que chama a “subida do
tempo histórico”: “Os nossos pais, piores que os nossos avós, geraram-nos a nós
ainda mais depravados, e nós daremos uma progénie ainda mais incapaz”.
Mas Ortega afirma: “Para mim não há duvida quanto ao sintoma
decisivo: uma vida que não prefere nenhuma outra antes, de nenhum antes, que se
prefere portanto a si mesma, não pode chamar-se decadente em nenhum sentido”. É
isso o eterno ser-se moderno proposto por Almada.
A questão é que nesta juventude estudantil mediática não se vislumbra qualquer
coisa que lembre a irreverência, um ser-se “moderno”, de um Almada ou
simplesmente um Bukowski no charco. Apenas representantes das massas:
“ao julgarem-se com direito a terem uma opinião sobre o
assunto sem esforço prévio para o forjarem, manifestam a sua pertença exemplar
ao modo absurdo de ser homem a que chamei homem-massa.(...)A pessoa encontra-se
com um reportário de ideias dentro de si. Decide contentar-se com elas e
considerar-se intelectualmente completa. Ao não notar a falta de nada fora de
si, instala-se defiitivamente naquele reportório. Eis pois o mecanismo de
obliteração” (Ortega Y Gasset, A Rebelião da Massa: 81-82).
As suas ideias são “apetites com palavras”. E os
comportamentos estão em acordo.
Entretanto, o ministro da educação veio a terreiro
demonstrar a sua preocupação e atenção. Poderíamos ficar mais descansados perante
a vigilância ministerial, não fora o facto de a tão actual análise de Ortega Y
Gasset ter sido publicada em 1930.
A irreverência inteligente, que existe e sempre existirá, está simplesmente a ser suplantada no palco mediático por uma "erroverância", com inequívocos custos sociais.
A irreverência inteligente, que existe e sempre existirá, está simplesmente a ser suplantada no palco mediático por uma "erroverância", com inequívocos custos sociais.
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