domingo, 17 de dezembro de 2017

0032 - Memória externa... o frigorífico


As Ciências Cognitivas criaram o conceito de memória externa, prontamente aproveitado pela informática. A memória externa resulta na valorização do objecto, e de como nele se podem armazenar sentidos, que aí são inscritos pela mente humana (consciência que na Arqueologia, Ciência Social com grande relação com o objecto, se desenvolveu sobretudo a partir dos anos 80 do século passado), proporcionando-lhe uma espécie de extensão (um disco externo, na linguagem informática).

E fazemos isto todos os dias sem o pensar e questionar.

Quantas portas de frigoríficos se trasnformaram em memória externa, armazenadoras de experiências, vivências, enfim... memória. E há qualquer coisa de feliz coincidência entre um frigorífico e esta tarefa de memorizar: they freeze.

E é isso que faz, em grande medida, a memória: captura, individualiza e retira das sequências causais momentos, épocas, experiências, transformando-os em peças de lego individualizadas que utilizamos para construir a nossa percepção da nossa identidade. Em muitas casas, uma parte da forma como nos vemos está na porta do frigorífico. No meu também.


sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

0031 - Cá vamos patrimonializando e rindo


É hoje banal, pelo menos entre certos círculos, reclamar contra as dicotomias, sublinhando que as oposições corpo/alma, sujeito/objecto, material/imaterial, ideia/matéria ou outras do género são teias de aranha herdadas do cartesianismo. A “dualidade” de Giddens foi-se impondo a uns, sendo que outros preferem falar de “relacionalidade” e outros ainda de holismo, onde toda a separação é apenas metódica. Alinho em todas estas perpectivas que visam superar visões dicotómicas do mundo e das coisas, menos naquelas que acham que, no mundo actual, não são elas que imperam na condução das coisas e nas decisões que lhes estão subjacentes. A dualidade da estrutura ainda é terreno do pensamento de uma minoria. A dicotomia perdura, resiste e domina. Descartes está bem vivo no senso comum e noutros.

Vem isto a propósito da dicotomia gerada pela institucionalização do conceito de Património Imaterial. A designação não me incomoda particularmente, porque nela percebo o sublinhar de uma, digamos, dimensão preponderante, mais intagível e, por isso mesmo, mais volúvel no tempo. Mas, no terreno do prático (que, ai, ai, não desconecto do teórico) o que acontece é que se tem vindo a subjugar a dimensão material à imaterial, assumindo, mesmo que incosncientemente, a dicotomia. Os reflexos disto nos processos de patrimonialização são óbvios (note-se que falo de patrimonialização, pois entendo o património como uma construção contingente, como um estatuto atribuído, como um toque de uma espada no ombro por reconhecimento de valor): é inegável que nas últimas décadas se tem patrimonializado mais com base no intangível e onde o tangível vai atrás (porque, lá está, não há dicotomia). É a actividade (e a sociologia que representa) que está no centro, e as materialidades o pretexto.

Relaciono esta tendência com a aceleração do tempo histórico e com o facto, de no tempo de vida humano, as coisas mudarem cada vez mais rapidamente, gerando sentimentos de perda, angústia, nostalgia face ao conhecido, valorizado, mas em processo de desaparecimento. A patrimonialização surge como uma espécie de boia de salvação das vivências, das experiências, dos ambientes, das coisas que nos povoam a memória e a vida, mas estão em risco. Tudo coisas próximas e que exercem sobre nós um efeito que as mais distantes já não  conseguem, sendo estas  remetidas, mais para o campo da curiosidade, do conhecimento e da racionalização, mas fora do âmbito das emoções e dos oportunismos políticos em que cada vez mais se desenvolve o processo de patrimonialização. E começa a confundir-se cada vez mais documento com património, vida com património, mudança com perda e morte. A passagem de uma visão cíclica do tempo e de um permanente retorno a um momento mítico original e fundador, que transpora consigo uma “ausência de mudança”, a um tempo linear e de inevitável transformação e esquecimento teria que gerar qualquer coisa como este problema identitário e psicológico que é a patrimonialização, esta tentativa de perpectuação, de suspensão do tempo.

Mas hoje, com a aceleração dessa mudança, a ruína distante ou mesmo o edifício mais monumental têm dificuldades em competrir pela atenção dos agentes patrimonializadores, até porque alguns desses elementos são economicamente e politicamente menos competitivos (levantam mais problemas e são menos “sexis” num ambiente cultural hedonista). E pouco importa que sejam mais representativos das dinâmicas e trajectórias da humanidade em determinados momentos da história e que o sejam a escala global, que estejam em maior risco ou simplesmente se encontrem a ser dizimados. São apenas materialidades, às quais, dicotomicamente, não se lhes reconhece a dimensão espiritual central nas trajectórias de se ser humano. Por descohecimento e ignorâcia, mas também por equívoco.

Mas, como dizia, o património é uma construção contingente. Pelo que aquilo a que assistimos é um excelente documento dos tempos que vivemos. Ainda vamos patrimonializar esta ânsia de patrimonialização, apenas não sei ainda muito bem que materialidades lhe estarão associadas.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

0030 - Contra corrente ou "Por esse rio acima"


Os Bonecos de Estremoz foram considerados património imaterial da humanidade. Bem, não terão sido exactamente os bonecos, pois esses são bem materiais, mas a actividade e a vivência ligadas à sua concepção e produção. Essas sim, mais imateriais. 
É mais um degrau dessa ânsia de patrimonialização de escala mundial que a vai progressivamente banalizando e desvalorizando. Não são os bonecos ou os chocalhos que estão em causa. Apenas a forma como se desgasta o conceito de “valor patrimonial de escala universal”. Quantos milhares de outras formas de fazer, que se materializam em objectos únicos, e que marcam tradições culturais locais e regionais estão a desaparecer e não são mais nem menos do que estas?
O que se está a passar com o desregrado processo de inflação de patrimonializações, que confunde local, regional, nacional, mundial, obedece mais à designada “networking” (vulgo candidatura bem montada), que a uma avaliação coenrente com a escala em causa.
Dir-me-ão: mas daí não vem grande mal ao mundo, nem ao património, antes pelo contrário, há qualquer coisa que passa a ser mais valorizada e conhecida, ganhando novo fôlego de vida. E até poderiam ter razão, não fosse o património um assunto de memória e o facto de a memória humana se parecer cada vez mais com um disco rígido.
Fiquei hoje a saber que todo este entusiasmo em torno aos bonecos de Estremoz fez com que no museu local, onde existia exposta uma colecção de arqueologia, a mesma tenha sido retirada, perante a invasão dos bonecos. E isto revela o que está realmente por trás de uma candidatura deste género: encontrar um “sound bite” patrimonial para ganhar destaque, sobressair, atrair visitantes, mesmo que isso seja à custa de encaixotar outros patrimónios, outras memórias, mais distantes e que aparentemente reflectem menos os sentimentos identitários presentes e, sobretudo, as angústias e as nostalgias que o acelerar dos tempos provocam com o desaparecimento de tradições que ainda nos são próximas e, naturalmente, estratégias políticas de escala pouco mundial.
Parece que a nossa memória é, de facto, tão limitada como a de um disco rígido, e que para armazenar algo novo e preservar qualquer coisa, temos que apagar algo mais antigo. Diria que o património arqueológico, enquanto materialidade de memórias mais distantes, está a sofrer desta reorientação para o intangível e mais próximo. Emocionalmente mais envolvidos com o que está mais próximo de nós e que morre aos poucos, não nos apercebermos que, na ânsia de preservar essa proximidade, vamos inadvertidamente apangando memórias mais antigas.
E enquando o país saúda mais um património local promovido a mundial, o Alentejo vai sendo surribado do seu património arqueológico milenar ou centenar, numa espécie de formatação do disco.