É hoje banal, pelo menos entre certos círculos, reclamar
contra as dicotomias, sublinhando que as oposições corpo/alma, sujeito/objecto,
material/imaterial, ideia/matéria ou outras do género são teias de aranha
herdadas do cartesianismo. A “dualidade” de Giddens foi-se impondo a uns, sendo
que outros preferem falar de “relacionalidade” e outros ainda de holismo, onde
toda a separação é apenas metódica. Alinho em todas estas perpectivas que visam
superar visões dicotómicas do mundo e das coisas, menos naquelas que acham que,
no mundo actual, não são elas que imperam na condução das coisas e nas decisões
que lhes estão subjacentes. A dualidade da estrutura ainda é terreno do
pensamento de uma minoria. A dicotomia perdura, resiste e domina. Descartes
está bem vivo no senso comum e noutros.
Vem isto a propósito da dicotomia gerada pela
institucionalização do conceito de Património Imaterial. A designação não me
incomoda particularmente, porque nela percebo o sublinhar de uma, digamos,
dimensão preponderante, mais intagível e, por isso mesmo, mais volúvel no
tempo. Mas, no terreno do prático (que, ai, ai, não desconecto do teórico) o
que acontece é que se tem vindo a subjugar a dimensão material à imaterial, assumindo,
mesmo que incosncientemente, a dicotomia. Os reflexos disto nos processos de
patrimonialização são óbvios (note-se que falo de patrimonialização, pois
entendo o património como uma construção contingente, como um estatuto atribuído, como um toque de uma espada no ombro por reconhecimento de valor): é inegável que nas últimas
décadas se tem patrimonializado mais com base no intangível e onde o tangível
vai atrás (porque, lá está, não há dicotomia). É a actividade (e a sociologia
que representa) que está no centro, e as materialidades o pretexto.
Relaciono esta tendência com a aceleração do tempo histórico
e com o facto, de no tempo de vida humano, as coisas mudarem cada vez mais
rapidamente, gerando sentimentos de perda, angústia, nostalgia face ao
conhecido, valorizado, mas em processo de desaparecimento. A patrimonialização
surge como uma espécie de boia de salvação das vivências, das experiências, dos
ambientes, das coisas que nos povoam a memória e a vida, mas estão em risco.
Tudo coisas próximas e que exercem sobre nós um efeito que as mais distantes já
não conseguem, sendo estas remetidas, mais para o campo da curiosidade, do
conhecimento e da racionalização, mas fora do âmbito das emoções e dos
oportunismos políticos em que cada vez mais se desenvolve o processo de patrimonialização.
E começa a confundir-se cada vez mais documento com património, vida com
património, mudança com perda e morte. A passagem de uma visão cíclica do tempo
e de um permanente retorno a um momento mítico original e fundador, que transpora
consigo uma “ausência de mudança”, a um tempo linear e de inevitável transformação
e esquecimento teria que gerar qualquer coisa como este problema identitário e
psicológico que é a patrimonialização, esta tentativa de perpectuação, de
suspensão do tempo.
Mas hoje, com a aceleração dessa mudança, a ruína distante
ou mesmo o edifício mais monumental têm dificuldades em competrir pela atenção
dos agentes patrimonializadores, até porque alguns desses elementos são
economicamente e politicamente menos competitivos (levantam mais problemas e
são menos “sexis” num ambiente cultural hedonista). E pouco importa que sejam
mais representativos das dinâmicas e trajectórias da humanidade em determinados
momentos da história e que o sejam a escala global, que estejam em maior risco
ou simplesmente se encontrem a ser dizimados. São apenas materialidades, às
quais, dicotomicamente, não se lhes reconhece a dimensão espiritual central nas
trajectórias de se ser humano. Por descohecimento e ignorâcia, mas também por
equívoco.
Mas, como dizia, o património é uma construção contingente.
Pelo que aquilo a que assistimos é um excelente documento dos tempos que
vivemos. Ainda vamos patrimonializar esta ânsia de patrimonialização, apenas
não sei ainda muito bem que materialidades lhe estarão associadas.